As notícias são como as cerejas.
Era bom poder desenhar a escrita do tempo
Em tempo de fartura, desvalorizam-se. Mas, mesmo assim, ao ouvir um agricultor queixar-se de que as cerejas, que nos hipermercados estavam a 2$99, eram compradas ao produtor entre $60 e $70, percebi a razão por que os empresários portugueses tinham rendido homenagem ao Dr. Passos Coelho e corrido a felicitá-lo logo depois da vitória do centro-direita, que prometeu liberalizar e ir mais longe que o programa da Troika.
Duvido que estas imagens engrenem com as do protesto dos jovens da Praça de Madrid, mais duras em Barcelona, ou o deita-te no Rossio com que os jovens lusos embalam a utopia da contestação. Ou, mais drásticas e graves, as greves e tumultos das ruas de Atenas, com os socialistas à beira da demissão por, por mais que tentem, nunca conseguirem saciar o polvo da especulação financeira mundial.
Também a história mal contada dos submarinos alemães, que Portugal comprou, conduz a outras imagens, com julgamentos e arguidos na Alemanha, mas não impedindo Paulo Portas de vir a ser ministro, ainda por cima dos Negócios Estrangeiros, embora com o general Pezarat Correia a afirmar dele o que se não diz dum coxo.
E ficam igualmente desvalorizadas as dos magistrados que, por terem sido apanhados a copiar, foram punidos com uma aprovação de dez valores (em breve serão delegados ou juízes nos nossos tribunais). As Novas Oportunidades conseguiram propagar-se… Sócrates soube bem manejar os diversos ministérios da justiça, por onde perpassa a dúvida dos pagamentos à esposa do último governante.
Sobre a corrupção, ainda que dos 93 por cento de portugueses a quem o assunto preocupa, e desses 73 por cento consideram que a dita se agravou no país nos últimos três meses, e haja um enxame de casos estranhos em todos os media nacionais, sem ignorar o que circula na internet, era bom que alguém deixasse de nos deitar areia para os olhos, enquanto nos diminuem os vencimentos, as reformas, aumentam os impostos, os preços da luz, da água, do gás, e nos informassem como ministros, secretários de estado, administradores públicos, presidentes de Câmara, vereadores, têm vários tachos, carros de gama às ordens, gastam fortunas em despesas de representação, e ninguém diz um palavrão, chama ao boi boi, ao corrupto corrupto, mas senhor engenheiro, senhor doutor, senhor economista, senhor administrador, senhor banqueiro, senhor presidente, senhor vereador.
Será que o já indigitado primeiro-ministro Dr. Passos Coelho virá partir a loiça? Ou os 317 candidatos a boys já na rampa de lançamento, como citavam os noticiários televisivos de 17 de Junho, às 8 horas da manhã, serão a primeira tranche que o PS vai pagar por ter perdido as eleições, e nós iremos ver na já conhecida farsa da dança das cadeiras.
Converso com os meus botões: não sei como a Bélgica sobrevive sem governo efectivo há quase, senão mais, de dois anos. A função pública, nesse país, não depende do partido vencedor. É eleita em concursos públicos. A sua independência permite a gestão corrente. Como em Portugal tudo é por concurso da cunha, desde qualquer director duma empresa pública, dos departamentos públicos, ao lugar de cantoneiro da junta de freguesia do afilhado do senhor presidente da Câmara, a cadeia de subalternidade e submissão mantém-se: ou aplaudes, glorificas, assumes, ou vais para o olho da rua tão depressa como os poderes públicos a manterem ou encerrarem contratos sob a sua gestão.
Quando o Tribunal de Contas «descobre» que o Estado saiu «prejudicado», como no caso do negócio entre este e o Hospital da Cruz Vermelha , continuam-se a beijocar os responsáveis, como se tais despesas não merecessem inquérito e condenações?
Há suspeitas de dolo um pouco por todo o lado, compadrio em empregos, partidarizações dos cargos públicos, concursos viciados, mas não há investigação e, quando as há, são tão lentas e tão confusas como os filmes policiais das séries americanas, onde o criminoso se confunde com o polícia e a vítima com o traficante. E se um tipo não tem tino, cortam-lhe a palavra, perseguem-lhe a família, jogam com as chantagens do medo, quando não o despedem, por razões que as futuras leis que o Bloco Central prepara para a liberalização dos trabalhadores, pretenderão legitimar e legalizar ao patronato, permitindo-lhe calar o descontentamento do funcionário com consciência de classe, ao apontar-lhe a porta da rua.
As cerejas, ainda hoje as comprei, num desses hipermercados que cresceram, como cogumelos parasitários e inúteis, na minha cidade, ao preço do empresário importador, que nos transforma em cidadãos de corpo e alma sem pátria e sem essência, manduqueiros da produção esclavagista e servil do explorado mundo rural nacional e do mais infeliz terceiro mundo. E quase me engasguei, ao ver passar para o restaurante do costume os potentes carros autárquicos que eu ajudo a pagar e eles usam, para almoçar em onde não vou por ser caro, mas contribuo para o pagamento da factura do que eles comem quotidianamente.
São imagens desvalorizadas, que os tempos permitem. Mas, cuidado, as imagens gregas, as de Barcelona, são avisos à navegação. Os tempos estão incertos, o granizo, as chuvas violentas, os temporais ciclónicos, levantam as telhas onde menos se espera.
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1 O Público, 16 de Junho de 2011