A história da Taberna do Toino Barrão descreve-se como um ciclo, com princípio, meio e fim... e volta a rodar. Hoje estão lá o Tinto & Companhia (mais conhecido por O Rainha) e o Mamma Mia (mais conhecido por O Couve), mas muitas referências têm de ser feitas nesta corrida cronológica, pois nos últimos cem anos passaram muitos comerciantes naquela que é uma das maiores esquinas comerciais de Riachos, situada em pleno Largo.
O comércio mais antigo de que há memória que tenha ali havido é o talho do António Gomes “Perna-Atrás”, filho do Perna-Atrás (de alcunha) original, Martinho Gomes, que era mesmo coxo. António Gomes herdou do pai a profissão de marchante (tal como o irmão Luís Gomes, que tinha um outro talho. Há fotografias dos três magarefes no princípio do século XX no livro “Riachos, Rostos da Terra”) e teve o seu negócio de talho e taberna mesmo na esquina. A sua filha mais velha, Emília Conceição Gomes, ou Emília Perna-Atrás, nasceu em 1929 (86 anos por estes dias) e lembra-se de ter ali vivido em pequena, antes de a família se ter mudado para a rua Entre Poços. Ainda falando nos tempos mais recuados deste memorial, a senhora Emília lembra-se de ter havido ali um albardeiro, provavelmente há mais de 70 anos.
O Toino Barrão veio em 1936, data da escritura de aquisição daquelas “casas de primeiro andar e casas baixas para habitação” a António Tomé Mendes e sua mulher Maria da Conceição Mendes, que por sua vez as tinham comprado a Manuel Simões Serôdio em 1923.
Tinha nessa altura 26 anos e casou-se logo no ano a seguir com Maria Celeste Ferreira, oriunda de uma família de comerciantes, irmã do João da Vaca e de mais seis valentes.
António Freire tinha vindo da Chancelaria aos 8 anos (em 1918) para trabalhar precisamente para o Manelzito, na grande loja situada onde é hoje o Café Relógio, até tomar conta do seu próprio espaço e começar a constituir família. Já agora, especule-se que possa ter sido influenciado pela imagem do seu patrão, o mais célebre “barrão” que imigrou para Riachos aos 9 anos e veio a ficar com a loja do seu patrão alguns anos depois.
Quando para lá foi o Toino Barrão, já lá estava encostado, para o lado do Atlético, a oficina de latoaria do Francisco Quartilho, que depois foi do filho Joaquim Quartilho e depois do Zé Filipe (dificilmente quem tem menos de 40 anos se lembra do Zé Filipe no Largo), uma dinastia de latoeiros que terminou no Zé Pereira, já nos Casais Novos.
O s’Toino e a menina Celeste trabalharam juntos na loja e taberna e viram o negócio florescer. Tinham muita clientela, muitos amigos e a localização era a melhor. O Toino Barrão foi aumentando o seu património através da compra das casas vizinhas, tanto na rua do Correio como na Rua de Santo António. Aconteceu com o espaço do funileiro (actual policlínica), do alfaiate (Toino Alfaiate, ou António Reis Lopes, que passou para o Zé Piteira na década de 60, situada logo a seguir, onde abriu mais tarde a papelaria Neulara e hoje está o Barbeiro Tomé). Acabou por ficar com toda a esquina, desde o Atlético até ao Xico das Mobílias.
A primeira taberna era encostada ao latoeiro, onde agora é uma casa de habitação, e tinha acesso interior por escadas à parte da mercearia, que corresponderia sensivelmente ao actual bar do Rainha, terminando no arco, que era uma parede com uma porta para um armazém. Mais tarde, trocou-se o armazém pela taberna e esta ficou maior. Entrava-se na mercearia pelo Largo da Igreja Velha e para a taberna pela rua principal e, por dentro, a clássica ligação entre as duas. Na taberna, o balcão ficava ao fundo, perpendicular à porta para a mercearia, onde havia um banco encostado à parede e a tulha da aveia e da cevada, que estava no lado da taberna em vez de na mercearia. Ao fim do dia, enchia-se de homens.
Havia uns bancos individuais espalhados pelo espaço e a mesa quadrada da sueca e dos jornais. Vinho, bebidas brancas e gasosas. A filha mais nova do casal, Brígida Luz, aviou muito na mercearia e na taberna, mesmo quando estudava em Coimbra vinha trabalhar a casa aos fins-de-semana. Recorda-se de sentir a ambiguidade da sua identidade, enquanto ocupante de papéis sociais, conforme o sítio onde estava. Na escola era a filha de um taberneiro, em Riachos era a menina que andava no colégio.
Lembra-se de, ao domingo, toda a gente ir ouvir a bola no rádio e dos homens entrarem com uma “pontita de bacalhau ou um peixito frito ou uma pontita de toucinho” para acompanhar. O pai matava porcos todas as semanas, por isso toucinho havia sempre. Os enchidos, muito bem curados, tinham muita procura.
Ao longo das décadas de 40, 50, 60 e princípios da de 70 a vida era repartida entre a loja e o actual espaço do Mamma Mia, que era o quintal - havia um corredor que passava por detrás do barbeiro. Ao redor do pátio havia uma cozinha, a casa da carne, galinheiros, um poço e um “palheiro” onde se fazia e guardava o vinho e a água-pé. As mulheres vinham ao fim da semana para fazer os enchidos, depois da matança semanal. No interior daquele portão misturava-se o trabalho com o “conhaque”, produzia-se ali muita coisa para vender na loja, mas produziam-se também muitas das vivências que ficaram gravadas nas memórias das gentes, nomeadamente as farras com os amigos. O palheiro onde estavam as dornas do vinho era muito frequentado, “era sempre um rodopio de convívio”, recorda a filha Brígida.
Em 1976, com a esposa já doente, o Toino Barrão concentrou a mercearia e os vinhos no lado do pátio, fechando a parte de cima. Em 1978 viria a arrendar esta parte ao José Franco, que ali abriu a Foto Franco.
A senhora Celeste morreu em 1985 e o Toino Barrão viveu os seus últimos anos no seu lugar. Com idade avançada, “foi um castigo para o tirar de lá”. A taberna já não era mais do que o sítio onde o dono tinha o vinho e juntava os amigos, já todos velhotes, lembra a filha. Só em 1990 se fechou definitivamente o portão, tendo Toino Barrão morrido um ano depois. A mãe era uma “heroína” e o pai um “homem bom”, reflecte a Brígida referindo que a imagem que ficou em Riachos da sua mãe era a de uma mulher muito generosa.
Voltando agora à história comercial. O célebre palheiro do vinho albergou desde os anos 60/70 vários negócios. A barbearia conhecida por O Mudo, dos irmãos José e Manuel Madeira (este era o mudo), familiares do barbeiro Carlos Tomé, que para ali se mudaram depois do José Antunes, proprietário do sítio original d’O Mudo, um pouco mais abaixo, ter aberto ali uma drogaria.
Foi também uma loja de artigos desportivos de columbofilia, aquariofilia, caça e pesca do Zé Ferrador, ou José de Matos Sousa Barroso, chamada Dealex (“De” de desporto e Alex porque todos os seus filhos têm o nome Alexandre). A Rosa do Ninho (Rosa Maurício) abriu ali a sua loja de roupa para crianças e enxovais, O Ninho, em 1980, e mudou-se para a rua dos Cingeleiros há coisa de 15 anos. A Mulher dos Plásticos também teve ali uma arrecadação, até que finalmente foi convertido em salão de jogos do Mamma Mia, há meia dúzia de anos.
Depois do encerramento em 1990, foi António Urbano, neto do Toino Barrão, que herdou o espaço a sul do barbeiro, que o remodelou e lhe deu uma nova vida, completamente diferente. Aproveitando o pátio como ex-libris do espaço, instalou primeiro o restaurante Igreja Velha em 2001, que passou a H2Bar no ano seguinte, explorado pelo Paquito. Reabriu em 2006 como Mamma Mia, integrando a parte de café, bar, restaurante, e acrescentando-lhe o salão de jogos.
Quanto à parte de cima, à taberna sucedeu a casa Foto Franco, que abriu em Março de 1979, já referida acima. Não haverá família em Riachos que não tenha pelo menos uma fotografia que ostente nas costas o selo da Foto Franco. Foi a primeira loja de fotografia comercial em Riachos (houve outra mais tarde, a do Paulino, também sapataria, negócio antigo, na rua dos Cingeleiros) e cresceu durante a década de 1980.
Natural de Porto-de-Mós, José Franco trabalhou até aos 19 anos na Foto Franco das Caldas da Rainha, de um tio seu. A fotografia era uma actividade de família e, além de Peniche e Alcobaça, Riachos teve a quarta loja com o nome Foto Franco.
Em 1972, regressado da tropa (esteve “no ultramar”, onde desempenhou funções na área da fotografia), José Franco foi para Torres Novas trabalhar para a Foto Aviz. Depois, a partir de 75 autonomizou-se e passou a fotografar casamentos e baptizados pelas aldeias do concelho. Em 1978 veio um dia a Riachos fotografar um casamento na sede da Banda Filarmónica. Ali, uma mulher que ainda não conhecia, desafiou-o a abrir uma casa de fotografia no espaço encerrado do Toino Barrão, uma loja situada num local com tal potencial que não podia estar fechada. A Teresa Gama tinha na altura a Gama Modas em frente, o seu marido explorava a Dealex, e era já uma mulher com visão e empreendedora (se houvesse esta palavra na altura). Ficou de tal modo convencido, que no dia seguinte foi falar com o Toino Barrão e arrendou o espaço. O laboratório foi instalado no bico do edifício e o estúdio lá atrás no armazém.
Passada mais de uma década, Franco, que era apaixonado da fotografia, mas acima de tudo via-a como um meio de subsistência, pelo que o negócio o levou a aderir à moda das croissanteries e abriu no mesmo sítio a pastelaria Aguarela. O espaço levou aqui mais uma grande volta.
Quando veio o advento da revelação automática, o investimento necessário para a reconversão do negócio da fotografia era muito avultado, e Franco ficou só com a pastelaria, que encerrou em 2005.
O espaço esteve fechado uns meses. Carlos Rainha viu a oportunidade de pegar naquela “casa mítica, com tanta história” situada em pleno Largo, e transformou-a num bar moderno com uma decoração rústica e acolhedora, para beber copos, conversar com calma a ouvir boa música. Abriu em 2006 e hoje chama-se Tinto & Companhia, uma mudança feita para acompanhar a evolução da sua clientela, que se tem mostrado cada vez mais virada para a apreciação de bons vinhos, os gins tónicos, as cervejas artesanais, assim como o salame de chocolate e as tostas que lhe deram reputação.
E a história há-de continuar.