O lado do coração
Em anos eleitorais é difícil um cidadão conseguir que a sua reflexão singre no mar encrespado dos interesses partidários. Quando o Tribunal de Contas, que se tem digladiado contra as despesas eleitorais dos partidos apoiadas pela Assembleia da República, se vê posto de lado pela unanimidade daqueles com assento na dita, em defesa dos seus interesses próprios, que valem as palavras dum cidadão, já na mais que madura fase da sua vida, ao duvidar que a partidocracia reinante, como se apresenta ao eleitor, mereça a sua confiança?
Claro que há uma linha que separa, como última opção, o que penso do que, no limite dos casos, opto. Assenta no Acordai do Lopes Graça, no D. Quixote de José Gomes Ferreira, no Nambuangongo meu Amor, de Manuel Alegre, na Receita para Fazer um Herói, de Reinaldo Ferreira, no Vem Serenidade, dum Raul de Carvalho, num Funcionário Cansado, dum António Ramos Rosa, no Portugal, de Alexandre O´Neill, na carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena. Poderia escrever centenas de nomes de poemas e de poetas, mas bastam estes para que se compreenda que nunca, mas nunca, entre a doentia e tenebrosa catequização hipócrita, conservadora e elitista de Cavaco Silva e o meu profundo cepticismo e divórcio das esquerdas partidárias existentes, não duvidaria um segundo sequer em colocar a vida, se preciso fosse, no campo da resistência contra a exploração dos mais fracos e humilhados. A cruz do voto, desde que houve conquista dum direito importante, mas não fundamental, na democracia em que se vive, nunca deixei de inscrevê-la num dos partidos ou nomes, que, à esquerda, com ou sem desilusões, com ou sem esperança, considero forças de Abril. E Abril para mim não se confunde com Novembro, não concebo democracia sem igualdade e esta continua fechada na gaveta de todos os socialismos. E não é utópica essa osmose num mundo em que 99% de cidadãos são manipulados por um por 1% de donos do planeta.
Se já não embarco nos amanhãs que cantam, nos e nas camaradas das listas em que não participei, nem escolhi, e que dizem que me defendem sem nunca, uma única vez, me ouvirem. Se já não recito ou papagueio missais de século XIX, ou bíblias marxistas do século XX, nem ignoro os Gulagues estalinistas, os processos de Moscovo, o KGB, as perseguições maoistas, Thianamen, ou Pol Pot, igualmente o não faço aos crimes da Pide, da Gestapo, da «democrática» Cia, das inquisições repressivas de todas as religiões.
Não é o meu tempo que me preocupa, mas o futuro dos meus filhos e netos, dos filhos e netos dos adultos de hoje, que morrem no Mediterrâneo, são vendidos como escravos no Senegal ou no Quénia, degolados na Síria, torturados em Guantanamo ou nos campos de diamantes da Lunda, assassinados na Birmânia, na África do Sul ou nas ruas das cidades norte-americanas, um pouco por todo o planeta, morrem pela cor da pele, em nome duma religião, como outrora os católicos fizeram aos albigenses, ou os protestantes aos católicos e vice-versa não há muitos séculos. Quem atira a primeira pedra?
A longa duração na história humana é real - a roda, a agricultura, a cerâmica, o medo e a dúvida, são exemplos de milénios - e tudo muda muito pouco no tempo duma vida humana, esse pobre elemento dum tempo curto. Aprendi que o relativo, a mudança, a ruptura, são as ferramentas temporais, que, aprendizes de feiticeiros, tentamos aprisionar em proveito próprio, quanto tudo decorre fora da acção humana, como um terramoto, o acordar dum vulcão, a queda dum meteoro. Aprender a viver no colectivo sem nunca abdicar da individualidade, do direito à diferença, da demanda dos porquês, chamo-lhe a verdadeira essência da democracia. A desigualdade individual não implica a colectiva. O homem não é uma mercadoria, um poeta não deve ser menos social que um engenheiro, um advogado, um operário, um técnico, mas todos devem combater o que não passa dum artifício, que é a ignorância, o nepotismo, a desigualdade de direitos proveniente do nascimento, da cor da pele, da riqueza, do domínio do homem pelo homem, usando o chicote ou a fé, a violência física ou a manipulação mental. A liberdade de opção de vida nada tem a ver com a moral, a felicidade é um cristal raro que se pode buscar numa demanda como o do graal, mas laico, no seu limite de tempo, no seu mudar de corpo no corpo que muda com a sua inter-relação com o tempo, na sua descoberta de que estar e ser é algo de muito raro e sublime e por isso há gerações e outros e outros na demanda que pode nunca ter resposta, mas acontecerá enquanto a palavra arder na melodia da existência.
A espuma do mar não é - mas também é - o mar. Procuro, com o silêncio, a escrita, o que outros buscam no diálogo, no confronto, na revolta, na fuga - um caminho para a liberdade livre de que falava António Ramos Rosa. A estrada da vida, que em mim começa e acaba à esquerda. O lado do coração.
António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt