por Carlos Tomé
Andei dias seguidos a ganhar coragem para entrar na loja e tirar um furo. Foi nesse dia. A Engrácia mais o seu buço amedrontava qualquer cachopo que entrasse ali com camisa de folhos, cabelo a brilhar de brilhantina, sovacos que embaçavam a patcholi e calças à boca-de-sino de alto lá com elas. Entrei mais nervoso que num exame. O buço dela fixou-se no meu que deixara crescer há meses sem sucesso visível e cuspiu bruscamente “diz lá o que é que queres?”. Tirei cinco furos. Três foram directamente parar ao vazio, no penúltimo saiu-me um pente e no último a jóia da coroa: uma ginja. Finalmente uma ginja, coisa inédita. Nem queria acreditar. Nunca tinha saído uma ginja nos furos da Engrácia. A Engrácia, mal refeita do acontecimento, fuzilou-me com o olhar e deitou mão a um copo que não era maior que um dedal mas que me pareceu do tamanho da praça de touros da Barquinha passou-o pelo alguidar de água choca e encheu-o com o néctar. Foi um acontecimento único. Uma experiência extraordinária. O néctar escorreu directamente da goela para o espírito e ascendeu comigo às nuvens. A minha primeira ginja aproximou-me dos homens a sério que emborcavam uma selha de uma vez sem pestanejar. Saí da loja da Engrácia em pleno Largo com as mãos nos bolsos e a tentar acertar o passo. O bafo a ginja era grandioso. E desejei que fosse eterno. Alguém se apercebeu, certamente pelo meu ar aparvalhado, de que algo de anormal se passara. A notícia espalhou-se pelo Largo como fogo em palha de palheiro e o inevitável aconteceu.
O Zé Negro, que se preparava para emborcar mais uma selha no Zé das Galinhas, quando soube da boa nova deitou a cabeça de fora e lançou o grito de guerra “lá vai boina” enquanto lançava a dita cuja em rodopio pelo ar. E pronto começou a guerra. Em menos de um fósforo o Largo encheu-se de gente. O Manuel Barroca espreitou à porta do Café Lezíria e foi a correr ver qual era o primo a quem tinha saído a ginja, porque o Barroca era primo de toda a gente, enquanto dizia para o Júlio Amado “ò Júlio toma aí conta do Café que eu vou ver o que se passa”; o Enxuto que já andava quase são há duas horas, graças a uma dieta alcoólica receitada pela Bruxa do Pego, voltou à mesma cegueira perguntando a toda a gente “onde é que tá a ginja onde é?”; o Quimbrão que tinha passado a noite ao relento numa valeta do Largo a curar uma má disposição por mor do último meio litro que lhe caiu mal, acordou mal humorado por causa da barulheira e rosnou “já não se pode dormir em paz”; o Zé Paula largou tudo e foi a toque de caixa para o Largo deixando a taberna entregue aos clientes que puseram de calhostras um pipo de vinho novo antes do taberneiro regressar; o Alberto Mocho que gostava pouco de confusões fechou de repente a porta do Café Ideal como se fosse um funeral a passar; o Joaquim Paloca atirou a malha do jogo do burro ao calhas acertando de raspão no Chico Cego que andava a distribuir os folhetos do Cinema Olímpia arriscado a ficar ainda mais cego; o Mira da farmácia, que tinha prometido a vinte e sete clientes só nesse dia que os remédios vinham na camioneta das seis, deixou o lagarto fugir do frasco de formol ao espreitar a confusão com esperança que os Claras já não fizessem essa carreira. Num ápice o Largo ficou repleto. O povo dava vivas de alegria. O furor foi tanto que até apareceu o Manuel Pacheco equipado de vermelho e com o cachecol do Benfica julgando que o glorioso já tinha ganho o campeonato e os benfiquistas comemoravam o feito, como haveriam de fazer quatro décadas depois no Marquês de Pombal.
A Engrácia esgotou os furos. E saiu de tudo menos mais ginjas. A revolta foi tal que a Engrácia foi apelidada de bruxa e arriscou-se a ser julgada pelo Santo Ofício e a ser queimada viva. O que valeu foi o discernimento do António Barrão ao lembrar que o vinho tinto era muito melhor que a ginja. E graças a essa evidência foi a debandada geral.
Na segunda-feira seguinte eu haveria de dar uso decente ao pente do furo da Engrácia, depois de passar o fim-de-semana a limar o cabelo cortado à tijela no Mudo. No Calhambeque, uma casa de venda de gasosas e sandes de mortadela e onde a malta ia ouvir na jukebox o In the Summertime dos Mungo Jerry e passava as tardes a jogar snooker e matraquilhos, em vez de aturar o Jacob e o Pipi Fonfon no Liceu Sá da Bandeira, consegui meter o estimado pente, ao qual retirei delicadamente os dentes, na ranhura das moedas de cinco escudos do jogo de matraquilhos. A medo, não fosse o zarolho dar pela marosca, o jogo lá vomitou cá para fora as 10 bolas que haveriam de fazer suar o jogador mais calmo. Claro que o desafio foi rápido porque as aulas já iam a meio, mas não tão veloz como o Vítor Gomes a descer na bolina a ladeira do Liceu até à estação dos comboios, a fugir do Clementino de avental, em sete minutos e doze segundos que ainda hoje é recorde em Santarém.
No Liceu o almoço era só futebol. Naquele dia, o Manuel João Quartilho, um verdadeiro artista da bola, pegou nela com os dois pés, passou-a por cima de três adversários que os deixou com torcicolos no pescoço, driblou quatro desgraçados que ficaram com os olhos tortos como se estivessem a olhar contra o governo e chutou-a directamente para a janela do laboratório de química com tanta força que derreteu os tubos de ensaio, dizimou as pipetas cheias de uma solução de peróxido de hidrogénio, dizimou o almofariz repleto de sulfato de sódio e derreteu o cautchou no Bico de Bunsen. A jogatana foi admirável, um feito iglantónico aplaudido por todos, pelo que nunca se percebeu por que razão o professor Licínio, o especialista da química, ficou à beira de um ataque de nervos, qual Heisenberg do Breaking Bad em fúria.
Cheguei à estação, na qual o Jaime Bruto ainda não tinha pintado o nome de Riachos, depois de passar por Vale de Figueira e Mato de Miranda. Ao entrar no Central olhei para a caixa dos furos da Regina e lembrei-me logo dos furos da Engrácia. E veio-me à boca, pela primeira vez, o verdadeiro sabor do dito popular “caiu que nem ginjas”.