Carlos Manuel Pereira
Em 10 de Setembro de 17461, a Inquisição deu ordem para que Maria da Rosa, moradora no Espargal da freguesia de Santiago, fosse presa e entregue no cárcere secreto do Santo Ofício em Lisboa, onde deu entrada sete dias depois.Vamos ver como os Inquisidores Apostólicos contra a herética pravidade e apostasia na Cidade de Lisboa e seu distrito2 descobriram uma pobre e infeliz rapariga, perdida no meio de nenhures, que dizia ser natural do lugar da Brogueira e que tinha de idade dezassete anos que fez em domingo da rosa3.
A Maria da Rosa vivia com a avó num casal perto do casal dos Castelos onde morava um tal Vicente Simão que terá feito chegar ao prior da freguesia a notícia do milagre duma imagem de cristo que suava água e sangue. O prior terá mandado o padre cura averiguar se seria milagre verdadeiro ou se seria algum fingimento. O cura, quando se deslocou ao casal, terá incumbido um vizinho homem temente a deus e outras pessoas mais que se pusessem ao pé da dita imagem e que não deixassem chegar pessoa alguma ao dito altar e observassem com muito cuidado se corria da dita imagem algum suor ou sangue, e estando as ditas pessoas mais de vinte e quatro horas ao pé da dita imagem, vigiando o que lhe estava encomendado, viram que não correu mais água alguma nem sangue. Entretanto o prior, por lhe constar que as pessoas continuavam a ir ver o milagre e parecendo-lhe que tudo era fingimento e embuste, para evitar irreverências, mandou buscar a dita imagem e a pôs no seu oratório com decência e não houve mais demonstração alguma nem de suor nem de sangue. Acrescentou também o prior que a avó era pessoa de pouco juízo e capaz de ser enganada pela neta e que esta também de pouca capacidade, com dezasseis ou dezassete anos de idade, e andar com grande ânsia de casar com um moço seu vizinho das Vendas cujo moço também queria casar com ela, e como a mãe do dito moço não quer que este case com ela, parece-lhe que a Maria da Rosa fazia aquele fingimento para ver se persuadia a mãe do moço que ela era pessoa de virtude e quisesse de boa vontade que seu filho casasse com ela. Os testemunhos de vários vizinhos falam também dos cheliques que a Maria da Rosa tinha na presença deles e que eram sete almas que tinham entrado nela e estavam à espera de serem salvas e para isso reclamavam o cumprimento de várias promessas. Segundo a própria Maria da Rosa, o padre eterno vinha a sua casa para a ensinar a ler e, acompanhado de anjos, para dizer missa. Enfim, tudo lenha para se queimar.
Para a Inquisição não bastavam os testemunhos porque o que lhes interessava era ouvir da ré uma confissão declarando a verdadeira intenção que teve em cometer os crimes. E se o fez para introduzir, como se presume com seus escandalosos fingimentos, erros e doutrinas novas opostas às verdades de nossa santa fé católica. A Inquisição temia o perigo da subversão da fé católica.
Maria da Rosa, após três meses de cárcere (das torturas não ficou registo), confessou que achando-se ela em companhia de sua avó materna, passando muitas e gravíssimas necessidades, não tendo com que as poder remediar e vendo-se também abatida e desprezada de todos por causa da sua muita pobreza, entrou no pensamento de fingir alguma cousa de que se pudesse ficar entendendo que ela era mulher santa e virtuosa e particularmente favorecida de deus porque desta sorte poderia conciliar respeito e veneração de todos ficando mais estimada e seria também favorecida com largas esmolas de que muito necessitava.Como a confissão não agradou ao senhor inquisidor, lá voltou ao cárcere por mais seis meses, findos os quais voltou à presença do inquisidor para insistir que não teve outra intenção senão a que já tinha confessado.
Após mais três meses de insistências para que confessasse toda a verdade para descargo de sua consciência e salvação de sua alma, ela manteve a mesma confissão e, finalmente, é mandado que vá ao auto público de fé e nele ouça sua sentença. Será açoitada pela ruas públicas desta cidade e a degradam por tempo de três anos para a cidade de Leiria.Publicada foi a sentença à ré Maria da Rosa no auto público da fé que se celebrou em os 24 dias do mês de setembro de 1747, estando presentes el-rei nosso senhor dom João o 5º muita nobreza e povo.
Não consta, por pesquisa nos registos paroquiais, que a Maria da Rosa tenha voltado para Torres Novas após cumprir o degredo em Leiria.
Uma coisa é certa, se o céu dos católicos existe, se a justiça divina é mais decente que a da Inquisição, se a Maria da Rosa não decidiu, por exemplo, candidatar-se ao céu de outra religião, certamente, passados 200 anos, terá deixado o purgatório a caminho do céu, após o papa João Paulo II ter apresentado no ano 2000 um pedido de perdão pelos erros cometidos pela igreja católica ao longo da sua história.