Vamos então traçar o mapa da vida do Agricultor seguindo a ordem dos diferentes donos dessa antiga taberna do ‘Barro Cavado’, nesses tempos praticamente fora da aldeia.
Há quem se lembre do Boneco, mas já não há quem se lembre do seu pai, Manuel Gandarez, que terá montado o estabelecimento na casa que agora tem o número 51 há mais de cem anos, naquela artéria da aldeia bastante circulada por causa dos trabalhadores do campo. Até perto de 1950, a taberna e loja manteve-se na esfera familiar, passando por três gerações. Do pai passou para o filho Manuel Jorge Gandarez ‘Boneco’. Mais tarde passou para o sobrinho deste: Francisco Jorge da Luz, o Renana era filho da Maria Quitéria, irmã do Boneco. Situando melhor a família, podemos indicar que o Renana era irmão do Manuel da Luz, o sócio número um da Columbófila de Riachos.
Saber a origem das alcunhas não é mais do que curiosidade, é mais a sonoridade da palavra e a capacidade de tornar uma pessoa ou uma família únicas no mundo de determinam a sua perenidade. Da alcunha do Boneco não conseguimos perceber a origem. Já o Renana, chamaram-lhe assim porque era pedreiro de profissão e gago por defeito. Conta a viúva Emília Ferreira que a alcunha vem de quando era servente e teve um patrão que se chamava Hernani...
Diz o Toino Mendes que é, com os seus oitenta e tal anos, uma testemunha desses tempos, que o Renana exercia os seus excelentes dotes de cantor na igreja e que era um homem divertido, danado para a paródia. Depois de alguns anos, a taberna do Renana mudou-se para a esquina da Rua do Campo com a Rua do Casal do Vale, havendo durante algum tempo duas tabernas no Barro Cavado.
Foi quando o Albino Pereira Lopes, um vizinho do Alto da Machada, arrendou o espaço à Maria Quitéria. Terá sido quem se aguentou mais tempo à frente do negócio: mais de 30 anos, entre os últimos anos da década de 40 e 1977. Na realidade, a Taberna do Albino era a Taberna da Maria do Albino, porque o homem trabalhava na fábrica do álcool e era a mulher que geria o estabelecimento. Só aos serões é que ia tomar conta da taberna.
Ao longo de todas as décadas em que existiu, esta taberna, como a maioria dos estabelecimentos comerciais no espaço rural, mostrou bem a divisão dos géneros pelos seus papéis sociais: a loja recebia as mulheres e a taberna recebia os homens.
Quem tem o maior número de recordações da vida anterior do Agricultor são os quatro filhos do Albino, que aí viveram os seus anos de juventude antes de irem todos trabalhar para Lisboa.
Quando os pais tomaram conta do comércio, Carlos Albino tinha quatro anos. Obviamente as suas personalidades foram influenciadas pelas vivências que tinham diariamente na loja e na taberna, diz Carlos. Lembra-se de que era um “centro de convívio”, lembra-se do jogo do chinquilho (no espaço ao lado do restaurante, onde hoje se vai fumar e beber um copo com vista para o vale até ao Alto da Machada), lembra-se dos homens a jogar às cartas e das conversas, lembra-se do campeonato do mundo de 66 na televisão e do Benfica, apesar de ser sportinguista (“dantes toda a gente era do Sporting. O Benfica só ficou grande por causa da televisão, que apareceu mesmo quando o Benfica ganhou alguma coisa”), lembra-se do António Lontro, um “grande contador de histórias”, que juntava 20 pessoas num ápice para ouvir a história do leão e do porco-espinho. “As pessoas eram pobres, vivia-se mal… a vida na taberna era um grande convívio”, diz.
Lembra-se que a loja vendia tudo o que era preciso ter em casa: carvão, petróleo, infusas, roupa, baraços, carne. Todas as semanas mandavam matar um porco no matadouro em Torres Novas. Ninguém tinha frigoríficos em casa, pelo que o animal era desmanchado aos sábados e no domingo já a carne tinha sido toda vendida, lembra. Só algum toucinho ia para a salgadeira.
Nessa altura, já nas facturas do Albino aparecia a designação “Flor do Bairro”, mas ainda faltavam uns anos até vir a máquina do café, cuja existência é o que distingue uma taberna de um café. Não havia café nas tabernas.
Com os donos já velhos, a taberna do Albino não teve sucessão na família e fechou. Veio então, já depois do 25 de Abril, o Arménio Feijão, outro vizinho, que foi o primeiro presidente da Junta de Riachos, e abriu aquela que ficou conhecida por Taberna do Feijão, com a sua esposa Helena. Esteve aberta pouco mais de meia dúzia de anos, até 1985. Os filhos lembram que os pais não eram comerciantes, por isso é que a experiência não durou muito tempo. Mas ficaram com histórias para contar. A Luísa lembra-se por exemplo do Joaquim Inverno, um cliente diário cuja expressão preferida, quando o afrontavam, era “Eu? Toca-lhe!”.
A São Benjamim foi a última senhora desta taberna. A taberna do ‘Zé das Obras’ (José Felipe Guardado, o marido) veio a seguir ao Feijão e durou apenas durante um ano, não chegando a fixar a clientela antes de ter fechado portas.
Com os anos 90 chegou Jorge Manuel Lopes, vindo de Maçãs de Dona Maria, concelho de Alvaiázere, que comprou o espaço, instalou-se com a família e o transformou finalmente em café e casa de petiscos. Estavam na moda os cafés com o nome de Retiro, e na Rua do Campo tinha de ser o do Agricultor. Ficaram logo famosas as moelas.
Oito anos depois, o Jorge foi para a zona de Tomar e passou o negócio para a cunhada, a actual proprietária do Agricultor, mãe do terceiro guarda-redes do Atlético. ‘Retornada’ da Suíça, Anabela Oliveira trouxe o seu sotaque de Braga para Riachos, reabriu o restaurante no ano 2000 e consolidou a fama de casa de petiscos: moelas, molhinhos, frango frito, pica-pau, morcela, farinheira, codornizes, entre outras coisas apetitosas no âmbito da cozinha caseira. O negócio agora já não depende dos agricultores, diz-nos, mas ao fim da tarde ainda se nota o movimento da clientela dos campos, principalmente no verão.