Desvergonha da memória ou desmemória sem vergonha?
Anda disseminada pela sociedade político-partidária dos partidos do dito arco da governação uma epidemia de falhas de memória, que deve fazer esfregar as mãos aos neurologistas nacionais. Dois exemplos muito breves: dos debates entre António Seguro e António Costa ficou por explicar para que foram os ditos. Poder-se-iam ter reunido, como propunha com todo o bom senso a jornalista São José Almeida, numa das salas da sede do Rato, calçarem umas luvas de boxe, arrumarem as suas contas. Poupavam às televisões públicas as despesas inúteis em horas nobres, em desprimor da mais que desejada cultura telenovelística lusa, não nos colocavam, cidadãos, sem percebemos se não têm memória ou vergonha de, após três duelos de paleio de galos de capoeira de qualidade, se esquecerem de esclarecer quais as políticas que defendem para serem alternativa ao centro-direita que infelizmente nos governa.
O segundo, da desmemória do primeiro-ministro sobre o seu passado económico-financeiro entre 1997 e 1999, recorrendo à Procuradoria Geral da República «que faça as averiguações especificamente sobre esta matéria que devem ser realizadas de modo a esclarecer se há ou não algum ilícito, independentemente de entretanto ter prescrito». (transcrito de o Público, 24/9, pág. 6). A confusão mental sobre se recebeu ou não da CPPC/Tecnoforma, quando estava como deputado no Parlamento, se estava ou não em regime de exclusividade, se não estava, porque recebeu o subsídio de 60.000 euros referentes aos dois mandatos, de 1995 a 1999? Se recebeu e não declarou, é ou não ilícito? Esqueceu-se, por exemplo, de entregar as declarações obrigatórias aos detentores de cargo público, e disso percebo, porque, mesmo na oposição, quando vereador não remunerado em dois mandatos na Câmara de Torres Novas pelo PCP (o segundo como independente) tive de o fazer à entrada e à saída.
Há uma memória nesta desmemória, de desculpa ou legítima, que interessa reter: saber que, se houve ilícito, o mesmo já estava prescrito. Aí a memória não falha. Mas prescrito omite a ilegalidade, se existiu? Ai, as traições da memória…
Mas a epidemia não pára aí. A ministra da Justiça esqueceu-se de, ao pedir desculpa pela embrulhada da reforma judicial com a plataforma informática Citius, tirar as devidas consequências dos prejuízos económicos e sociais que criou, de pedir a demissão.
O ministro da Educação, matemático de renome, transformou a colocação de professores, num erro matemático, e lá foi pedir desculpa ao Parlamento, sem assumir as consequências dos seus actos.
Já não lembra o curso de Miguel Relvas, ou o de José Sócrates, porque a epidemia nos foi transformando em cidadãos de curta memória. E nem nos fica um pingo de recordação dos dislates de Marinho Pinto, que denuncia o que se ganha como deputado europeu, mas se esqueceu de se demitir, como o fez do partido que usou para poder ser eleito; mas considera que o vencimento do deputado português não dá para viver em condições em Lisboa. Será essa a razão que, após três anos de negas, o governo aceitou aumentar, em início de ano eleitoral, o vencimento mínimo para 505 euros? Com este já se pode tomar o pequeno-almoço no Ritz, almoçar no Tavares, encomendar o jantar num dos restaurantes do Guincho, assistir a um dos espectáculos do Casino Estoril, comprar um fato no Pestana e Brito? Adquirir obrigações do BES Saúde?
Daí que tema estar a ser influenciado pela desmemória e já nem recorde que estas noticias sobre o primeiro-ministro já corriam no diz-se que diz-se da Internet há cerca de dois anos e nunca mereceram, do próprio, desmentido, e da justiça, inquérito. E como também nada se conclui do BCP, do BPB, do BES, do que mais adiante, para mal dos nossos pecados, virá a surgir, o mais que se pode fazer é entrar num serviço de urgência de qualquer hospital do serviço nacional de saúde e queixar-me de perdas progressivas de memória, e regressar, após um atendimento vinte horas depois, com dois bem-hurons para a dor de cabeça e a informação para uma consulta de psiquiatria em cada vez menos hospitais e cada vez mais longe e com custos cada vez maiores e com mais tempo de espera que um cidadão depressa se esquece do que lhe preocupava as meninges, e siga o conselho do professor desempregado que a única saída é o desemprego, porque é inútil participar à justiça do erro matemático do concurso que o prejudicou, porque se aquele é culpado, a justiça desmemoriou-se no arquivismo informático de que a ministra que se desculpou não é culpada porque nada tem com a informática que garantia como a salvação da justiça deste país.
Não estaremos, como povo, também a ficar desmemoriados com tanta falta de memória (e de consequente impunidade) em que se transformou o princípio de sucesso na vida pública, o dito empreendorismo?
António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt