A malograda lei do graffiti, recente, que obriga os artistas a sujeitarem um projecto à aprovação política pelas Câmaras Municipais, vai completamente contra a essência dos street artists. Burocracia não é com eles.
Comprova-o Phillipe Lourenço, que passou nos últimos meses por uma experiência pouco satisfatória. Colocou o projecto da Perca de Tempo à apreciação da Junta, que o aprovou masque o encaminhou para a Câmara, o organismo que atribui a licença. Seguiram-se diversas tentativas do autor junto do departamento de urbanismo da Câmara, onde finalmente obteve uma aprovação informal. Philipe, que no mundo da pintura é PH1, contudo, insatisfeito com a falta do verdadeiro ‘papel’, foi aguardando, até ter decidido avançar mesmo sem a licença. Agora já está.
Na escolha dos temas que pinta, Philipe representa o instantâneo, as suas obras têm o carácter do imediato, é a inspiração do momento que precipita o desenho. Por isso na maior parte das vezes, o conceito que lhes subjaz é mais indecifrável, por ser assente numa ideia pessoal é apreciável mais pela sua estética.
É o caso da Perca de Tempo, a mais recente pintura a solo, na parede traseira da Casa do Povo, que é a metáfora de uma história pessoal e também sofreu com as alterações da envolvente. Philipe aproveitou o tão comum erro de linguagem para se referir à frustrada tentativa de, há uns anos, fazer um festival de hip hop na Casa do Povo: correu muito mal e não foi mais do que uma perda de tempo. No projecto inicial, o peixe nadava imerso num cenário de floresta, que, segundo o autor, encaixava no ambiente do estacionamento da Casa do Povo, com as frondosas copas das árvores existentes. Mas depois, já com a maqueta em apreciação na autarquia, as árvores levaram uma poda profunda, que lhes retirou toda a ramagem verde. PH1 reparou e alterou o desenho, deixando apenas cotos de madeira como fundo. Esta versão foi aplicada no produto final, apesar de, quando o trabalho teve início, no mês passado, das árvores já brotavam milhares de folhas verdes. Já não voltou a trás e ficou assim: em três dias acabou o serviço. Extensores, pincéis, spray e escadotes são as suas ferramentas.
Na memória dos riachenses, mais do que o urso de pelúcia esventrado da Sopovo (a dona do muro tinha-lhe pedido simplesmente um peluche) ou o crocodilo no estacionamento Casa do Povo, estão retidos o retrato do Manel Pacheco a tocar harmónica no Largo, ou o semblante do Chico Cego a ouvir o relato no muro do Campo da Bola (a homenagem aos adeptos do Atlético foi a sua participação no projecto de Violant, no âmbito do programa da Bênção do Gado).
Philipe já pintou roulotes, interiores de lojas, muitas paredes de casas privadas e até fez a decoração do atelier do artista dos curtumes João Carvalho. Agarra qualquer desafio, mas não aceita “Noddys e Mickeys”, que é como quem diz, encomendas feitas. Gasta-se muito dinheiro nesta actividade, mas quando, de vez em quando há convites, é compensador não ter pagar para trabalhar.
Nivaldo Lopes “caça almas” em Riachos
O último trabalho de Philipe foi uma “cara feia” no estacionamento da Cooperativa Sopovo. Sabe bem que os monstros, mesmo que tecnicamente bem feitos, causam sempre aversão em muitas pessoas. Mas, desta vez resolveu prosseguir, assim mesmo sem filtro, numa espécie de regresso à clandestinidade, agora com bagagem que lhe dá o conforto necessário para não se ralar com as reacções.
Na realidade foi só dar uma ajuda ao Maiz. O desenho original de “O Caçador de Almas” é da autoria deste amigo de escola de PH1, cujo nome de nascença é Nivaldo Lopese e oriundo da Chamusca. Bastante mais verde na prática mas com a mesma irreverência, Nivaldo refere que foi Philipe quem lhe deu o mais forte impulso para o desenvolvimento da sua paixão de sempre, o desenho. Da mesma forma, Philipe confessa que foi o João Maurício quem “puxou” por ele, há uns anos. O grande salto foi dado no muro do Campo da Bola.
A residir em Lisboa, Nivaldo recorda a boa experiência da pintura de vidrões na capital, mais um projecto da divisão municipal GAU, em que a cada artista foi entregue a decoração de um vidrão. “Assim que apresentei o projecto, deram logo a licença”, diz entusiasmado. Gostava que na Chamusca fosse assim mas, pelo contrário, recorda a “caveira linda” que apagaram na sua terra natal, fruto do que diz ser a intolerância local. Como remédio, só lhe apetece encher a Chamusca com as suas pinturas “de pesadelo”, mas recusa-se a trabalhar sob a pressão de ser apanhado por olhares. É muito minucioso e perfeccionista nos seus trabalhos, perde muito tempo com os pormenores, algo incompatível com o ‘pinta e foge’.
Nivaldo revela a sua apetência pela beleza das “caveiras” e pela criação das figuras imaginárias do fantástico, de “mundos de pesadelo”. Aponta Zdzisław Beksinski, o ‘surrealista gótico’ polaco, como uma das mais fortes influências.
A sua pintura em Riachos representa uma voraz criatura devoradora de almas, “não é preciso olhos para sentir a alma” diz.
Em Riachos não é como na Chamusca, diz Nivaldo. A sensação que se se pode respirar enquanto se trabalha aumentou quando reparou que as pessoas páram para dar a sua opinião sobre a pintura, como se já não fosse um choque deparar-se com um street artist a pintar na rua. O Maurício e o Philipe já provaram nesta terra que as suas qualidades de enriquecimento de espaços tristes e cinzentos são maiores do que o preconceito contra os ‘grafittis’. Agora são aceites, quer dizer, mesmo as ferroadas que levam de vez em quando, não são nada comparadas com o que era dantes.
À memória vem o impacto do célebre caixão (autoria Violant) às portas da igreja que tanta celeuma causou até ser apagado. Ou os gatafunhos que o Philipe fazia constantemente nas redondezas do ringue. Tempos de provocação foram, digamos, substituídos por tempos de aceitação. Agora são em maior número os murais apreciados pela população do que os que causam desconforto aos mais sensíveis.
Houve adaptação das duas partes e Philipe não tem dúvidas de que o “grande trabalho” no Bairro de Santo António, em que dezenas de pessoas organizadas pelo NAR se armaram de trinchas e baldes para pintar ruas inteiras na Bênção do Gado, também contribuiu sobremaneira para a aceitação dos muralistas. Tudo isso ajudou as pessoas a gostar de pintura, “a ver a diferença”, como diz Philipe.