Anda daí mais eu

Quarta, 19 Novembro 2014 12:39 Café Central
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por Carlos Tomé

O tempo estrovantou. Prantou um xaile pelos ombros, saiu de casa e caminhou em passo acelerado até à igreja. Se adrega a chover aparo-lhe as costas, disse para si. Passava em frente ao Central e ia sempre a falar, mesmo que fosse sozinha, talvez a pensar em voz alta ou a rezar a nossenhor. Por vezes ia acompanhada pela Conceição Rito com quem fazia parelha nas rezas. A Emília Lopes Portelinha gostava muito de conversar, a sua característica particular juntamente com a claridade de espírito, a alegria de viver e a invejável memória. Mas era muito distraída. Por vezes encontrava a Elisa Lopes e ambas punham a conversa e a amizade em dia. Mas naquele dia, quando passou ao Central ia muda que nem um eremita com voto de silêncio. Encontrou a Emília Miola e bichanou-lhe o que a apoquentava. “Ò quechopa ando amaldiçoada se calhar por mor das rezas em falta, se adrega a querer orar a Deus há que Deus que me falta o terço, ando mesmo descoroçoada, a ciguêra pelo terço não a perco, mas o terço deu sumiço. Atão quechopa diz-me lá o que é que eu hei-de fazer?” perguntou a Emília Lopes à Emília Miola que logo ali lhe passou a receita. Tinha perdido o norte a um terço e por isso precisava de o encontrar, quando não a sua vida deixava de ter tarilho, ficava sem tarimbelhos, cirandava nela mas sem tino que se visse. Especialista das coisas dos feitiços, do mau-olhado e do quebranto, a Emília Miola baixou a voz “anda daí mais eu” e segredou-lhe o segredo da reza. Falaram à socapa sobre o responso. 
 
Depois de rezar a ladainha, de botar umas lamparinas a arder em azeite e de repetir o ritual por três vezes, durante três semanas, eis que de súbito aparece o rosário. Como dizia a reza “o que é perdido é achado e o que é esquecido é lembrado Santo António bem aventurado”.  Afinal, estava mesmo ali à mão de semear e nunca tinha dado por ele. Pendurado ao pescoço o terço só pedia que lhe contassem as contas, mas com a distracção do costume a Emília Lopes nunca tinha dado fé dele. Finalmente, o achado deu à sua vida o tarilho de que precisava.
 
À noite, o João dos Casais Pinheiros chegava ao Central, bebia um Toddy e ajudava nalgumas coisas. O João era uma espécie de guarda dos Casais Pinheiros onde vivia sozinho. Nunca aprendeu a ler nem a escrever, era uma pessoa simples e gostava muito das gentes que frequentavam o Central e que eram como família. Também no Central o João gostava de se sentir guarda do Café. Cumprindo a sua missão, ao final da noite, fechava as portas e as janelas. 
 
Algumas vezes o João adormecia sentado a olhar para a televisão. E os rapazolas mais ousados logo engendravam uma maneira de meter um susto ao João. Eram muitas as artimanhas mas desta vez a coisa resumia-se a atar com uma guita as suas pernas à cadeira sem ele dar por isso enquanto passava pelas brasas. E assim foi. Alguém bateu com a tampa da arca dos gelados com tanta força que o João acordou espavorido e tentou começar a correr mas a guita não o deixou pelo que caiu no meio do Central com enorme estrondo. Catrapuz. A cara do João ficou completamente cheia de casca de arroz que eu espalhava no chão quando chovia. O João desapareceu num ápice e voltou logo de seguida brandindo um martelo de orelhas. O Central ficou vazio de repente temendo a sua reacção enervada. Mas o João aproveitou o ensejo simplesmente para fechar as janelas e trancar os trincos com a ajuda do perigoso martelo. Afinal já era meia-noite, estava na hora do Central fechar e o João cumpria, tão-somente, a sua missão de guarda, porque só assim a sua vida tinha tarilho.
 
Chegava ao Central de motorizada que acelerava até mais não, trazia sempre o boné de lado na cabeça, à tronga-mocha e por cima o capacete com as presilhas soltas. Atirava o capacete para o assento da Casal e entrava no Café com a fralda da camisa de fora e com o corpanzil a abanar como se fosse tocado por uma rabanada de vento. Dizia-se que a motorizada já tinha acartado mais de 50 hectolitros de vinho e que sabia o caminho de cor. Zé Heleno era o produtor do melhor melão da região e não escondia a ninguém que gostava de uma pinguinha de azeite. Uma pinguinha é uma forma de dizer porque a sua goela escoava toda a espécie de líquidos como um secador seca toda a humidade do milho. A sua sede era tanta que até o Dr. Moreira lhe tinha receitado andar com um garrafão de vinho pendurado ao pescoço. Mas o Zé Heleno gostava acima de tudo de estar com os amigos. Para ele a vida era uma festa, com os excessos naturais de uma festa. Se não fosse assim, com os festejos próprios da bebida e da alegria, a vida era sempre cinzenta. 
 
“Quando estive na Holanda apanhei um dia uma grossura tão grande que não fui capaz de subir a escada do prédio e aqueles franciús tiveram que me atar uma corda aos cornos e eram seis a puxar com toda a força e viram-se à rasca para me arrastarem para cima” dizia o Zé Heleno enquanto fazia a parte que se assoava com todo o estardalhaço ao boné, amarfanhando-o todo e bufando baba e ranho. E, depois de beber uma imperial só de uma assentada, saía do Central ainda mais feliz. Para ele só assim a vida tinha tarilho.

Actualizado em ( Terça, 27 Janeiro 2015 23:13 )