Uma latinha de enchovas

Quinta, 10 Julho 2014 15:25 André Lopes Café Central
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Carlos Tomé

Por causa de um barril de cerveja mal engatado, a vareta fugiu como um raio, passou rente à prateleira do brandi deitando abaixo a garrafa de Aniz Marie Brizard e a botija de Genebra, mas poupando a garrafa de Macieira reservada para o Dr. Macieira, fez um voo rasante pela ventoinha do tecto que mexia tão devagar que era como se estivesse parada, ameaçou os frascos de rebuçados do Dr. Bayard e das pastilhas Bazooka, roçou pela parede o diploma de tirador de cerveja e o dístico “se vens aqui como amigo entra já que a casa é tua se não vens também te digo é melhor ficares na rua” sem consequências de maior e foi estatelar-se de encontro à arca dos gelados da Olá perfurando uma caixa de Super Maxi e outra de Epá.
 
Faltou a imperial. Tocou o alarme das urgências. A clientela ficou em transe, sem saber como viveria o resto do dia, vendo negro o seu futuro imediato, antevendo a morte, agonizando no deserto à míngua de sumo de cevada. Os mais afoitos já pegavam nas bicicletas para irem ao Chico Afonso na Golegã matar a sede. O Alfredo Sacristão, se soubesse, tinha tocado o sino da igreja a rebate e se a sirene dos bombeiros se fizesse ouvir lá iria logo o Bernardino a acelerar deitado na sua Zundapp Famel. Era urgente chamar o Joaquim Seruga, o melhor e mais experimentado técnico de frio da região, para tomar conta da ocorrência. Felizmente não foi preciso procurar muito porque o técnico vinha nesse momento a entrar no Central pois tinha montado o seu escritório precisamente no balcão do Café. 
 
Com a sua calma habitual, Joaquim Seruga tinha primeiro que averiguar a situação, tirar o azimute à coisa e fazer o diagnóstico da maleita. Como não havia imperial, pois era evidente o problema com a pressão do barril, para as primeiras impressões foram meia dúzia de médias Sagres, a sede que se deseja, mais meia dúzia de médias Clok, a água de Santarém e para terminar o diagnóstico um par de Marinas, essa cerveja do Algarve que se bebia quando não havia outras. Claro que entretanto tinha chegado o Manel Arego, adjunto do Seruga, que não deixava ficar o amigo em maus lençóis e que com o mesmo constituía a parelha de especialistas de frio mais sedenta da região. Os técnicos instalaram-se de pé encostados ao balcão junto ao barril olhando para o seu estado com o desdém e a altivez de quem domina os seus segredos e não os revela. 
 
Depois de esgotadas as três grades de cervejas variadas, e não havendo imperial, Seruga decidiu então resolver o problema. E mais depressa do que um fósforo já havia imperial de novo. “Milagre, já temos imperial!” gritava o Zé Pirão que nunca faltava a uma avaria destas e pedia mais uma rodada de imperiais e um alguidar de marisco do Eusébio. “Para mim é só uma lambreta”, “e para mim traz-me um panaché” suplicavam duas pessoas a que ninguém dava importância porque não gostavam de cerveja. “Ao que nós chegámos, já não se bebe cerveja a sério” exclamava aborrecido o Vítor do Stand que só bebia canecas.
 
Foi então engatado um novo barril que ficou vazio na meia hora seguinte graças ao empenhamento profissional do Seruga e do Manel Arego aos quais se juntou o Almeida a tocar tambor no tampo do balcão. Os três deram conta da tarefa sem grande sacrifício. O Seruga esteve mais de seis horas a empinar imperiais sempre encostado ao balcão e nunca em ocasião alguma foi visto a ir à casa de banho. “Mas onde é que este gajo que é um pau-de-virar-tripas mete tanta imperial” perguntava um cliente com a seriedade de quem quer saber o significado da vida. E isto sem que alguma vez o Seruga distorcesse a voz ou falhasse algo no seu raciocínio altamente científico de cubicar uma caixa de fósforos. 
 
Aliás, a fase da cubicagem era o apogeu da actuação do Seruga que até metia cálculos aritméticos, equações progressivas e decimais, energia cinética, o teorema de Descartes e outros conhecimentos da Física que a todos faziam abrir a boca de espanto e que punham em sentido a professora Olga, conhecida entre os alunos por Olguita, se tivesse o azar de entrar no Central naquele momento para comprar tabaco.
 
Depois de derrotado por KO o segundo barril e quando toda a gente pensava que o Seruga tinha finalmente esgotado a sua capacidade de ingerir aquele tipo de líquidos, este chamou-me de lado e soprou-me ao ouvido “ouve lá não tens aí uma latinha de anchovas para ajudar a beber mais uma?”.

Actualizado em ( Quinta, 24 Julho 2014 14:47 )