Saudade novamente
Nunca se ouviu tanto da saudade como agora. Esta geração sabe-a tão bem que dói. Repito o discurso mas há que soltar. É a força que nos resta e nos apega ao que somos.
Partilho com a maioria dos que estão fora o sentimento do crescer patriota que antes - em mim - não havia. Pela saudade, sempre, do quente de quem ama, das cores e cheiros com que se cresce.
Atiramos isto pelo ar e flutuam as memórias. A corda de estender a roupa que prende desde a casa ao quintal. O cheiro da hortelã ao passar. As paredes caiadas. O perfume das arcas antigas. O arrancar da laranja fresca da árvore da avó. Saborear. A sensação de crescer e confiar. O abraço apertado dos pais. O olá. O até já. Nunca o adeus.
Não deixo muito espaço entre estes pequenos quês e o meu coração.
Sou uma criatura emocional sem remédio. Desavergonhadamente sensível.
Tenho em mim memórias que não são só minhas, são de uma geração e viver. Não se traduz noutros lugares. Pertencem onde crescemos. Onde sempre voltamos.
Não é por sermos pequenos que somos menos. Quanto mais longe estou mais me apercebo da nossa grandeza de valores e da impossibilidade da adopção total a outros lugares. Sou cigana de alma, viajo e aprendo, amo os lugares e as pessoas. Todas elas me ficam tatuadas dentro.
Mas a Casa, onde fica o nosso coração, essa há-de ser sempre a mesma. A minha terra. A minha gente.
Não é lamento. Tento perceber porque dou essa razão às minhas raízes que cada vez me são mais importantes. Não paramos para pensar nestas pequenas coisas tão naturais. São-nos garantidas quando aí estamos. Vivemo-las. Mas assim, aqui, tenho-as em mim sempre que sinto. Estão em mim como os meus sinais. É pele que se renova sempre que volto. E respiro.
E agora aqui, na américa do mundo, vejo-me grande, não porque estou cá, mas porque todas essas pequenas coisas me fazem crescer. Embora frágil, sou um todo maior que as partes que me dividem. Delicada gestalt. A coragem transformou-se em força e agora sou melhor.
Cá partilho vivências que me fazem diferente. Pela primeira vez esse diferente faz-me sentir bem. Orgulho de outra história. De gerações de trabalho e conquista. Muitos nem sabem nem sonham. E por isso sinto a responsabilidade de ensinar essas pitoresquidades tão nossas que espantam quem não sabe. Repito sotaques e explico expressões indecifráveis. Sorri-me o coração e penso no que nunca me importei antes. Num milissegundo reconforto-me com a sensação de casa e do que é ser quem sou. Já não tenho medo e digo-o.
Sou portuguesa e amo o meu país.
Dada a condição de estar longe, é uma estranha forma de vida. Mas todos os ais são meus. Falta-me conquistar o meu lugar aqui para poder dizer que consegui, mas continuo a lutar. Como todos os nossos passados. Sempre ouvi dizer que o que importa é a viagem. O que posso dizer é que essa viagem me está a dar o gozo que a vida pode ter.
Mesmeriza-me, a existência. Por todas as boas e más passagens. O fado português acompanhar-me-á. Está-me no sangue. E que doce é.
Até já.
Raquel Carrilho
Washington D.C.
Estados Unidos da América