Era bom poder desenhar a escrita do tempo
Eleições, utopias, o misticismo luso e os imbróglios de ser-se de esquerda
"A esquerda (não considero o PS de Sócrates de esquerda) apresentou-se, como sempre, ao eleitorado, sem um projecto político unitário de mudança, sem um acordo expresso do que fariam com uma vitória à esquerda. As bandeiras que agitaram, os almoços e jantares de confraternização, as arruadas, as visitas às feiras, os comícios, os debates, não responderam ao que o povo de esquerda português gostaria de saber: o que fariam, se, hipoteticamente, houvesse uma maioria política de esquerda?"
As esquerdas portuguesas têm um grande problema. Ainda que lhes não falte a denúncia da ameaça real da avalanche capitalista que a Troika simboliza na represen¬tação dos três partidos em que o liberalismo secundariza, quando não hostiliza e procura eliminar, o desenvolvimento social, o CDS-PP, O PSD, o PS; ainda que os seus actuais líderes repitam diariamente as linhas do perigo que a direita e o centro representam na defesa dos direitos civilizacionais das classes sociais mais desfavorecidas; falta-lhes a magia da varinha mágica que transforme o convencimento em realidade.
As mensagens, quer do PCP, quer do Bloco de Esquerda, não passam. Ou passam, o que é mais real, mas não influenciam. E os resultados eleitorais de domingo – escrevo na quinta-feira anterior – irão, infelizmente, demonstrar que «o nosso povo», na fórmula política de Álvaro Cunhal, opta entregar o seu voto a quem, com aquele como suporte, o vai delapidar e espremer, nos próximos tempos, de forma conscientemente brutal.
Masoquismo? Inconsciência? Ignorância? Resignação? Medo? Incapacidade de crítica e autocrítica? Entrega a outrem da decisão da sua indecisão? Este povo é estranho.
Pode-se dizer que a mistura das atrás citadas características se foi estruturando, desde a Expansão Portuguesa e o rolo opressor da Inquisição religiosa, agravada no século passado pela estrutura da sociedade policial salazarista, as linhas essenciais da mentalidade do português. Dividido entre o Eldorado da Lonjura, em África, na Índia, no Brasil, e o afastamento da evolução material e da mentalidade economicista dos países europeus do Centro e do Norte, ficou-se pelo sebastianismo místico dos salvadores que hão de surgir e conduzir a Pátria a um caminho de riqueza, desenvolvimento, felicidade.
Desde o Abril da Democracia que não se passa disto…
Dá hoje a vitória ao PSD, aposta forte no CDS, como ontem o fizera no PS, que agora (e ainda bem) castiga.
É aqui que as Esquerdas políticas falham. Mostram-lhe a dura reali¬dade, um futuro difícil, caminhos de escassez. Dizem-lhe que está na sua decisão, na sua intervenção, a forma de impedir o filme de terror do futuro próximo e, quem sabe, se para o resto do sempre das suas vidas. Projecta-se para o mito dos futuros que cantam o desespero e a frustração do presente. Mas não lhes delegam o direito de decisão, não lhe dão a força duma utopia,
Se a esquerda urbana, moderada e pequeno-burguesa, em que acreditavam, o PS de Sócrates, Soares, Almeida Santos, o traíram de forma miserável, no emprego, na educação, na saúde, na justiça, como acreditar nas outras, do PCP ao Bloco de Esquerda, que não sabe o que representam e defendem além do protesto que ele sente como seu, mas de que duvida da eficiência? Votar nessa esquerda, para quê, se ela não apresenta um projecto de governo, nomes que assumam a alternativa, a capacidade de uma mudança?
Rui Tavares, eurodeputado independente pelo Bloco de Esquerda, colocou, numa recente crónica, o dedo na ferida: «Um projecto político, se quer de facto mudar as coisas, precisa de idealismo e pragmatismo. Idealismo, para marcar a diferença em relação ao que existe. E pragmatismo, porque terá de construir uma maioria, e essa maioria só se faz com os que são diferentes de nós… A política ganhadora não se faz com os velhos hábitos; faz-se quebrando os hábitos, para forçar a entrada de ideias novas, para criar esperança e para fazer regredir os preconceitos»1.
A esquerda (não considero o PS de Sócrates de esquerda) apresentou-se, como sempre, ao eleitorado, sem um projecto político unitário de mudança, sem um acordo expresso do que fariam com uma vitória à esquerda. As bandeiras que agitaram, os almoços e jantares de confraternização, as arruadas, as visitas às feiras, os comícios, os debates, não responderam ao que o povo de esquerda português gostaria de saber: o que fariam, se, hipoteticamente, houvesse uma maioria política de esquerda?
Aqui entronca, desde 1975, o drama das actuais esquerdas portuguesas. A razão, os caminhos das sociedades futuras, pode mes¬mo estar no que defendem. Mas, quando é colocado no tabuleiro da política nacional, a necessidade de ouvir o outro, agir com o outro, despartidarizar a intervenção, criar fomas colectivas de participação dos cidadãos, dar-lhes a decisão, a escolha, o sentirem-se responsáveis nessas escolhas e decisões, começam as recriminações sobre o divisionismo, as diferenças tomam a primazia, os rancores suplantam qualquer tipo de necessária unidade. Como querem que o povo lhe confie o seu voto, a que chamam – tristemente – útil, «para travar a reacção», se o que lhes oferecem, não é um governo e um programa, mas as confusões e ambiguidades de sempre…
Talvez comece, com esta crise, e os seus resultados eleitorais, o virar de página da democracia portuguesa, assente em velhas palavras nunca conquistadas: pão, paz, saúde, justiça, educação. O país foi-se transformando num protectorado europeu, o povo num servidor resignado dos interesses da finança e dos especuladores. A crise veio para ficar…
Os casos das vitórias das esquerdas eleitorais italianas de Milão, Nápoles, derrotando Berlusconi e a Cosa Nostra, talvez – e o mal é que duvide logo com o talvez – ensine que há que mudar , à esquerda, e muito. Diria mesmo: quase tudo. Se o não fizerem, a força das circunstâncias arranjará outros interlocutores.
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1 O Público, 1 de Junho de 2011