o riachense

Segunda,
06 de Maio de 2024
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O alfarrabista digital

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Cartas de D. Sebastião, Isabel II, Adelino Palma Carlos, Agustina Bessa Luis, Camilo Castelo Branco, a nomeação de António Ferro para director do Secretariado da Propaganda Nacional, uma partitura de homenagem a Maria Lamas da autoria de Lopes Graça ou a 1.ª edição francesa da Constituição dos EUA são alguns dos documentos que já passaram pelos olhos atentos de Adelino Correia Pires, o alfarrabista digital que assentou arraiais em Torres Novas há cerca de quatro anos e que também poderia ser chamado de antiquário.

Nuno Matos

Adelino Correia Pires nasceu em Portalegre há 54 anos, vindo a ser o mais velho de cinco irmãos. Ainda criança veio viver para o Tramagal e aos 17 anos foi estudar Medicina para Lisboa, curso que abandonou ao fim de três matrículas. “Foi um erro, eu nunca poderia ser um bom médico”, confessa a o riachense numa conversa em sua casa.
Optou por fazer vida empresarial, mas nos últimos três anos tem-se dedicado ao mundo dos livros, documentos e manuscritos antigos. “Isto no fundo é um hobbie que, a pouco e pouco, me tem absorvido. Faço-o com gosto, paixão, rigor e respeito por quem cá anda há mais tempo. Dei por mim a gostar de coisas que o tempo passou por cima. Comecei a comprar faiança portuguesa e outros objectos antigos, que me obrigavam a pesquisar para entender a sua génese. Esse tipo de investigação envolveu-me no mundo dos livros”, objectos que começou a estudar. “Rapidamente percebi que nunca iria ter a biblioteca que gostaria”.
Foi então que se deparou com um dilema de papéis: bibliófilo e coleccionador por um lado e mercador por outro. Uma questão que demorou a perceber até dar o passo final. O enriquecimento de uma biblioteca pessoal exigia grande investimento financeiro e Adelino Pires optou por uma actividade com retorno, auto-sustentável. A solução passou pela venda de livros e manuscritos na internet.
Definiu critérios para a aquisição de livros e depois evoluiu para os manuscritos. Livros de 1.ª edição, exemplares autografados, dedicatórias, ou seja, que tivessem mais-valias para além do objecto literário.
“Não queria fazer do blogue e agora do site, um mercado de livros. Quando coloco os livros no site gosto de contextualizar a obra, o autor ou o tema. Não compro de manhã para vender à tarde. Não faço do alfarrabismo um negócio puro e duro, mas sim uma actividade que me ocupa parte do meu tempo, no sentido de aprender e até partilhar”, explica o alfarrabista que se encaixa mais na actividade de antiquário do que na de vendedor de papel usado.

O antiquário e o digital


Ao contrário de outros alfarrabistas, Adelino Pires não tem um espaço aberto ao público para os interessados tactearem as lombadas de tecido ou folhearem as páginas amareladas e envelhecidas. Através da internet, está em todo o lado e aproveita o tempo para as pesquisas: “Só posso trabalhar assim. Não nasci no mundo dos livros, não herdei uma biblioteca, não tirei um curso de Literatura ou História, e para estar confortável comigo mesmo, tinha que dedicar algum tempo para perceber como é que as coisas funcionavam. Uma das vantagens é que não passo o tempo todo numa loja”, como acontece com os alfarrabistas tradicionais. Abrir uma loja no centro histórico de Torres Novas, “obrigava-me a lá estar das nove às cinco”.
Por outro lado, percebeu que o mercado do livro antigo e do manuscrito está nos grandes centros e esta é uma região que não tem massa crítica para sustentar o negócio.

Descobrir pérolas perdidas


Quando andava a comprar faiança ganhou experiência relevante para o actual negócio. “Vou a todas… Tanto vou a uma feira, como a um leilão no Palácio do Correio Velho. Tanto falo com especialistas como qualquer pessoa que queira partilhar - por vezes com surpresa - documentos e livros inesperados. Esta mobilidade permite-me pôr o nariz em todo o lado”.
Raramente compra lotes ou pacotes, sendo mais selectivo: “Opto pela pesca à linha em vez da pesca à rede. O alfarrabista tradicional compra bibliotecas, grandes lotes, encontrando um ou outro livro que interessa. Não faço isso… Sou mais criterioso e por vezes pago um pouco mais”, confessa.
Ao trilhar este caminho, tropeçou nalgumas pedras de calçada que se viriam a tornar autênticas preciosidades: “Tenho um livro que nunca venderei e que marca o meu início no alfarrabismo: a 1.ª edição de “Poemas de Deus e do Diabo”, de José Régio”. E explica porquê: “Primeiro, porque nasci em Portalegre, onde Régio viveu parte da sua vida. Privou de perto com alguns dos meus familiares e fez o exame de Francês e Português à minha mãe. Está-me ligado afectivamente. Segundo, porque há três anos tropecei neste livro e comprei-o por 15 euros. Duas semanas depois, um igual estava à venda num leilão por 1500 euros”.
Doutra vez, comprou um caixote de livros e fotografias, pois tinha a sensação que iria ali descobrir qualquer coisa. “No meio daquilo tudo encontrei um auto-retrato de Jaime Cortesão que acabou por compensar a minha insistência”. Recorda com entusiasmo quando encontrou os primeiros 25 números do Diário de Notícias, com o número zero datado de 29 de Dezembro de 1864. “Nunca coloquei à venda nem sei se irei colocar, porque são daqueles documentos que não se encontram todos os dias. Nunca me passou pela cabeça que aquela pessoa tivesse uma coisa destas”, confessa

História da vida privada e da vida pública


A área dos documentos e cartas manuscritas é um nicho de oportunidade que Adelino Pires tem desenvolvido porque não há muitos alfarrabistas portugueses que trabalhem com este tipo de produtos. Diz que exige paixão e paciência para perceber caligrafias quase indecifráveis ou contextualizar datas quando não são mencionadas.
E esta paixão e paciência tem dado frutos: “Alguns colegas, com mais anos de experiência, oferecerem-me a oportunidade de adquirir manuscritos que eles não ligam nenhuma porque dão muito trabalho. Tenho que decifrar, ler, perceber, investigar. Faço-o com gosto e descubro algumas pérolas”, assegura. Uma delas, é uma carta de Brito Camacho, que qualquer bibliófilo gostaria de ter, dirigida a Sá Nogueira. Fala da sua passagem por Torres Novas e dum pretenso filho que lhe atribuíam enquanto foi cirurgião ajudante no Regimento de Artilharia 2, aquartelado na cidade do Almonda.
E aqui surgem assuntos do foro íntimo que Adelino Pires recusa expor na praça pública: “Já descobri muitos segredos de variadíssimas personalidades. Quando isso acontece, normalmente não coloco à venda.
Outra categoria de documentos que o vendedor se debruça são os oficiais. Os documentos de Estado podem enriquecer aspectos históricos.
Alguns desses exemplos são os relatórios que Jorge Jardim, secretário de Estado e empresário em Moçambique, enviava para Salazar, focando aspectos que nunca foram muito bem esclarecidos publicamente. Ou uma carta do António Enes, Comissário Régio em Moçambique, para Tomás Melo Breyner, médico do Rei D. Carlos, que falava sobre as razões pelas quais Gungunhana declarava guerra a Portugal. Ou cerca de 100 cartas de pessoas anónimas sobre a reeleição do marechal Carmona. “É curioso, do ponto de vista sociológico, saber como as coisas se passaram. São cartas que caracterizam uma época e devem ser divulgadas”, adianta o alfarrabista que pensa um dia relatar em livro factos revelados pelo acervo.
Cartas do Conde D. Henrique, Rainha Catarina de Áustria, D. Sebastião, Rei D. Miguel e várias cartas régias como uma de D. Pedro I, que tem a particularidade de ter dupla assinatura, o que não era normal ou uma de D. João VI dirigida ao Papa, são outros dos documentos que já passaram pelas mãos do alfarrabista.


O mercado das peças de museu


Se os livros e manuscritos estão à venda, têm um preço. Adelino Pires define o valor de forma diferente. Enquanto o livro tem o preço mais ou menos tabelado, depois pode variar segundo alguns critérios, com o preço de aquisição, estado, se está autografado ou não, se tem assinatura de posse, ou se está encadernado, o que nalguns casos acrescenta valor e noutros retira.
No que tange aos manuscritos, a prática é diferente, porque cada documento é único. Depende do estado, data, assunto e da raridade com que o documento aparece: “Eça e Camilo são dois vultos da nossa literatura. O Camilo escreveu mais livros e cartas que Eça. Uma carta do Camilo, sendo difícil de encontrar, é menos difícil que uma de Eça. Ainda há pouco vendi uma carta do Camilo por 1200 euros, que tinha a particularidade de falar a um dos seus dois filhos sobre o outro”.
Devido à relação que estabelece com os documentos, sendo que “cada um tem uma vida e história própria”, por vezes, Adelino Pires tem renitência em vendê-los: “Os que não quero vender, ofereço ao meu filho. Ainda recentemente tive uma carta de Agustina Bessa-Luís, salpicada com lágrimas ou pingos de chuva, que gostaria de não ter vendido… No entanto, tive de o fazer para comprar outras coisas. Tenho de me financiar nas coisas que tenho. Abro mão de umas para agarrar outras…”
Os clientes, denominação que tenta evitar mas não recusa, são de todo o país e até do estrangeiro e visitam regularmente o seu site (doutrotempo.com). “O Brasil é um novo mundo com um potencial enorme”.
E o tipo de clientes? Principalmente liberais e investigadores. O preço elevado dos documentos que vende é em si uma peneira, assume. “Os médicos são um nicho importante porque têm uma vida muito pressionante, exigente e precisam de escapes. Não compram só por terem dinheiro, mas porque pretendem enriquecer-se culturalmente. Investigadores também compram - menos - e os estudantes consultam. As pessoas que me compram livros não são o retrato da sociedade portuguesa, mas da parte que tem disponibilidade para investir”.
E no meio de tantas preciosidades, Adelino Pires considera que o livro mais valioso que vendeu foi a 1.ª edição francesa da Constituição dos Estados Unidos por 1200 euros. “O interessado comprou-o na expectativa de conseguir uma assinatura do presidente Obama e se o conseguiu, passa a ser o ex-libris da sua biblioteca”. O alfarrabista detém também a 1.ª edição do “Tributo” de Miguel Torga, ainda por abrir, quando este assinava como Rodolfo Rocha. “É uma peça de colecção, não aparece todos os dias. Se o vender rondará os 1500 ou 1600 euros”.

Actualizado em ( Quarta, 26 Janeiro 2011 17:09 )  
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