Recuso-me a pedir esmola para uma cultura alternativa
Quase todos os dias de manhã me desloco para o Arquivo Municipal, onde procuro sentir a pulsação de outros tempos deste concelho sobre que, felizmente, se tem escrito muito, mas se desconhece imenso. Hoje, dei-me de caras com uma grade a impedir a entrada para Entre os Muros, ao Ral. Lembrei-me de que se aproximava o folclore da Feira Medieval, havia para os funcionários um livre-trânsito, mas para os assÃduos da biblioteca ou das piscinas, apenas duas soluções: ou uma pausa na actividade, ou uma caminhada sem inÃcio definido, porque depende do local do estacionamento, com malas e bagagens que comprometem a deslocação. Estacionado o carro, optei pela caminhada. Na bilbioteca, rareavam os frequentadores, o bar estava vazio, pouca gente na sala de leitura, no arquivo, por teimosia, o autor desta crónica.Â
Opto, a partir de hoje, até ao fim da dita festança da carta do Povoador, por um retiro pacato na zona alta, para um regresso ao arquivo na próxima semana.
 Não sou contra as festas. Defendo, já o escrevi demasiadas vezes, uma festa concelhia, estruturada no seu presente, com visão de futuro. Uma festa invertida da que é a medieval, seja a de Torres Novas, como as suas congéneres, nacionais, que surja do apelo dos bairros, das freguesias, das colectividades e associações, algo como uma acção participativa, onde a Câmara apoia, mas não dirige. Uma festa que se enraÃze no desejo popular de mudança, de dinâmica, de diferente. Houve no passado um movimento inter- colectividades, como uma Torres Novas industrial, como uma Torres Novas comercial, como uma Torres Novas agrÃcola, como uma Torres Novas sociocultural, como uma Torres Novas escolar, como uma Torres Novas assistencial. Em vinte anos, tudo se desmoronou, sob o peso controleiro da polÃtica municipal, que, incapaz de perceber o valor criativo da autonomia democrática, deu-lhe para organizar os diversos sectores estruturais concelhios numa uniformidade de voz e de pensamento, através do amiguismo, do partidarismo de oportunismo fácil, dos subsÃdios, tão semelhante aos autoritarismos ditatoriais do século XX assentes no privilégio, no seguidismo mental, na criação de elites afastadas do mundo vulgar, este sujeito, pela necessidade de subsistência, de sobrevivência, à resignação, ao medo e ao terror. As grandes festas organizadas pelo poder escondem, sobre as paradas majestosas, insuperáveis fraquezas e dilacerantes misérias.Â
Passados o foguetório do curto prazo, a cidade que hoje conhecemos, viverá de quê? Vai ser o quê? A zona urbana central é uma ruÃna. A própria rua da Câmara Municipal é um exemplo dum espaço desvitalizado, onde pululam serviços camarários e outros como soluções alternativas ao AVC degradante. Os sectores produtivos, agrÃcola, industrial, encolheram como lagartas sujeitas aos rigores do inverno.Â
Os sectores culturais, associativos, educativos, municipalizaram-se.Â
Tudo reage ao som do clarim do poder, que usa o pau ou a cenoura, conforme lhe agrada ou irrita. A autonomia, o espÃrito crÃtico, a liberdade de opinião, a necessidade de sobrevivência torna-as clandestinas, são passadas, como as lendas, de geração em geração, através da capacidade social de resistência contra a feudalidade suserana. Os movimentos dos pequenos grupos, de poetas, músicos, artistas, associativos, que subsistem na vila, mas fundamentalmente nas aldeias do concelho, mantendo, com uma dignidade merecedora do maior respeito, a criação, o bairrismo e o património, como uma Fénix constantemente queimada e renascida do próprio fogo, a esperança de que haverá futuro, outro, claro, fora desta geleira de ideias onde só germina o valor do empreendorismo mercantil, assente na subsidiodependência dos fundos comunitários.Â
Não dou para esse peditório de indigência, que nos tem degradado como concelho, enquanto nos aliena como sociedade multicultural.Â
Fico-me, na linha do Bloco de Esquerda, pela defesa dum orçamento participativo que permita a este concelho, na cultura, no património, no associativismo, ultrapassar a mão estendida da pobreza envergonhada em que o poder os transformou. Dar ao povo a capacidade de mostrar como é capaz de criar novas alternativas de sociedade com o dinheiro dos seus impostos. Mas para isso é preciso perceber-se que, apesar do novo acordo ortográfico, cultura ainda se escreve com um u.
António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt