Um ano depois da experiência de O Físico, o grupo que criou esse espectáculo que obteve tanto acolhimento do público na sua única apresentação no Teatro Virgínia, prepara-se para apresentar uma nova peça. Ao contrário da comédia de desconstrução que fez arrancar, de forma ambiciosa, um novo grupo de teatro ancorado nos talentos de João Luz, Hugo Gama e Marta Tomé (que chamamos de encenadores), O Medidor de Passos é um melodrama que se debruça no amor.
O processo de construção do espectáculo, partilhado por actores e encenadores, a “co-criação” (sobre isto leia-se a reportagem feita sobre O Físico há um ano), é a característica mais marcante deste trabalho. E, tal como há um ano, falar desta peça e do seu tema passa grandemente por reflectir sobre como esse método influiu no resultado final.
A peça está estruturada em onze blocos, em que cada bloco é um texto, um monólogo, um poema, um capítulo, isto segundo as diferentes palavras utilizadas para a descrever por várias pessoas envolvidas, actores e encenadores. Uma sucessão de poemas, ou de “prosas poéticas”, uns exploram ideias mais abstractas e outros ideias mais concretas revela João Luz, que os escreveu nesta que é a sua segunda experiência em teatro. Apesar de não existir uma estrutura narrativa clássica óbvia nesta peça, porque cada monólogo é uma história autónoma, há pontes entre eles, evidentes, pelo menos, no estilo de escrita. É uma linguagem muito simples, testemunham agora os actores, muito terra-a-terra, que permite a um espectador desligar-se de uma história mas apanhar a seguinte. “O facto de ter diversas histórias é uma das riquezas da peça, o espectador pode encontrar vivências suas em várias histórias, e aspectos que o fazem reflectir”, diz um actor.
Mas estamos a falar de quê exactamente? Do tema do amor e do propósito de “recuperar a dignidade do melodrama”, que caiu em desgraça e que, quando hoje ouvimos falar nele a propósito de um filme ou peça, dizemos que é lamechas. Recuperar o género foi um objectivo assumido, porque “não seguimos modas”. Há nos textos muitas referências ao campo, alusões bucólicas que, por serem românticas por natureza, são óptimas para os textos de O Medidor de Passos.
Mas, porque os produtores são pessoas avisadas, há o receio de se tornar piroso. Esse é sempre um risco incontornável nas peças que falam de amor pois, como diz a Cátia Freitas, uma das actrizes, “o amor não é explicado, é sentido. Não há ciência que o explique, o teatro pode corporizá-lo, mas não explicá-lo”. Já a Marta Silva começou a corar enquanto confessava que cora nos ensaios enquanto diz o seu texto. “São coisas muito íntimas que não se dizem às pessoas” diz, e muito menos em público, olhos nos olhos. É difícil fazê-lo com íntimos, quanto mais com estranhos.
Mas para se ser actor, passa-se por isso mesmo. Os onze monólogos são ditos pelos onze actores, que assumiram este exigente desafio que os faz dar mais um passo em frente no teatro amador. Ainda sobre o ruborizar da Marta, o Hugo Gama serve para tratar destas comoções, “há que segurar este tipo de emoções”, diz ele, e confirma-o a Cláudia Lopes, de 18 anos, quando ensaia o seu monólogo de forma impressionante.
Nesta experiência, o processo misturou-se com o conteúdo e, apesar de os textos originais de João Luz não terem sido modificados, a tal co-criação baseou-se na acomodação dos actores aos textos e na procura da forma de os conseguirem dizer. O título da peça fala disso mesmo, de medir os passos “no nosso percurso de vida somos todos mais ou menos calculistas, estamos sempre a tentar situar-nos em relação aos outros. (…) Estamos sempre a tentar saber onde é que vamos pôr o pé, tendo em vista o lugar em que nos sentimos bem”, esclarece o autor.
O movimento e a “consciência corporal” são pois a terça parte deste trabalho, da responsabilidade da Marta Tomé, que, com os actores, primeiro trabalha “a esfera individual e depois o diálogo, a tal negociação que levará ou à ruptura ou consignação”. Existe uma componente vídeo e uma banda sonora “muito melodrama de Hollywood” (João Luz confessou ter escrito os textos a ouvir bandas sonoras de filmes). Cada história tem um vídeo de um solo, tendo a Marta ajudado os actores a conseguirem “ler mentalmente” o texto enquanto fazem a sua performance e a fazerem uma “tradução corporal das frases”.
Aqui os actores são também dramaturgos, relembra o Gama. No teatro “as pessoas têm tendência de serem mandadas. Aqui os encenadores assumem uma postura mais de condutores, de orientação”.
“Foi muito generoso da parte deles acertar a maneira de interpretar cada um”, refere a Carla Pinto sobre o trabalho dos encenadores. A Cátia chegou a trocar de texto porque “o lugar dela” não era aquele. Quando leu o novo texto disse logo: “este texto é meu”, e encontrou o seu “ser da personagem”. Trata-se de uma “busca da verdade”, do melhor lugar que nos define, num permanente intercâmbio e negociação. “A partir do momento em que nos damos a conhecer, é pelo confronto com o outro que os lugares se moldam”, como na vida real, particularmente no amor.
Olhos nos olhos nas escolas
A semanas da estreia, o grupo de actores e encenadores deu início ao contacto com o público através de workshops nas escolas. A primeira oficina foi na Escola Profissional de Torres Novas, no âmbito do curso de animação, e agendaram-se mais duas sessões na Artur Gonçalves e na Maria Lamas.
O balanço? “Os miúdos estão ávidos por uma palavra que não seja hipocrisia e as pessoas são as verdadeiras palavras”, diz o Gama entusiasmado pela experiência que deu bons frutos na cativação dos interesses para o teatro. “Ir lá olhá-los nos olhos e dizer coisas, com uma linguagem que toca”, continua.
Revelou a Cátia Freitas que o maior elogio que a peça recebeu foi dado quando os miúdos que participaram na oficina se mostraram tocados pela experiência e nem quiseram quiseram ir ao intervalo.