A Palavra que é preciso defender
Os ossos sentem a agonia que o vento e o frio transportam na mutação climática do planeta. O inverno pode ser um inferno, escreveu na sua crónica de quarta-feira, em o Público, Miguel Esteves Cardoso. Na Suíça, em Davos, reúnem as consideradas elites do capitalismo mundial. Há estudos que mostram que em 2016 1% da população mundial detem mais riqueza acumulada de que o resto da população. A globalização e as novas tecnologias arrastam a humanidade para um mundo estranho. A palavra, o seu desenho no papel, cede a um garatujar cada vez mais sintético no mundo virtual. O facebook, na sua aparência de democratização da vida social, pela intervenção dos cidadãos na vida pública, pouco ultrapassa o papaguear da criança aprendendo o valor conjugado dos sons. Alguns anos depois da passagem do cabo tormentoso da oralidade, o ruído transforma-se em sinais desenhados, o abismo do conhecimento inicia a verdadeira aventura da humanidade: a palavra. O conhecimento do mundo. A relação consigo. A armadilha da descoberta do limite da vida. As opções da fé, do panteísmo, do ateísmo, do medo e da coragem de se saber individualmente transitório, biologicamente transformável.
A tecnologia serviu para melhorar a condição humana, para a libertar da servidão, lhe dar um pretexto para a aprendizagem dum caminho para a cidadania. Não foram fáceis, nem lineares, os caminhos. Mas a cada conquista dos degraus para a igualdade, a tecnologia criava os anticorpos dessa ascese, a luta pelo poder ganhava novas armas de destruição, minorias cada vez mais poderosas dominavam os destinos dos povos, as desigualdades eram as formas de domínio com que subjugavam, pela força das armas, pela hipocrisia das leis, pela exploração económica.
Chegámos a Davos. Os computadores vão-se transformando em algo cada vez mais incontrolável, porque cada vez mais complexo. O desemprego aumenta a cada ano que passa, a miséria, as epidemias. A cegueira de que falava Saramago anda, solta, nos nossos olhos, dentro dum gueto de informação manipulada.
Não sei que futuros se preparam neste presente dilacerado, em que o próprio clima se transmuda pela ambição de domínio dos mercados planetários.
Urge manter acesa a fogueira das palavras. Sei que as forças são poucas, mas todos somos muito mais do que um por cento. Somos o livro da humanidade contra a barbárie do poder totalitário. Haverá sempre uma batalha, enquanto a palavra resistir e significar.
O frio enregela, mas também endurece. E é necessário não deixar que Davos destrua a nossa capacidade de impedir que a palavra inverno coincida com a palavra inferno.
António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt